Pedir e suplicar é como falar mal de Deus
Por Miguel Garcia
As considerações do teólogo e filósofo Andrés Torres Queiruga sobre
súplicas/oração de petição e afins, resumem-se basicamente nos seguintes tópicos:
1 – A oração é fundamental na vida religiosa.
2 – Existe uma íntima dialética entre a oração de uma pessoa
e o que a mesma pensa de Deus.
3 – É de extrema urgência revisar muito a fundo o modo de
orar, para que seja adequado à nova imagem de
Deus exigida pela sensibilidade
atual, o que não significa “acomodar-se à figura deste mundo”, mas absolutamente o contrário: de aproveitar
a chamada dos “sinais dos tempos” como uma profecia que nos chega do melhor da
evolução cultural e de sua recuperação na teologia, para realizar uma autêntica
conversão.
4 – Também os discípulos começaram a perceber a novidade que
Jesus introduzia na imagem de Deus e compreenderam a necessidade de mudar seu
modo de orar (Lc 11,1).
5 – O ensinamento de Jesus sobre o Abbá (papai), que em
geral nos parece simples, é sério e delicado; tendemos a obscurecê-lo,
carregando-o com nossos medos e deformando-o com nossos fantasmas, continuamente.
E é aí quando Deus nos escapa para o além, para o céu, e acabamos por vê-lo
distante, dominador e justiceiro. Por essa razão, necessitamos redescobrir
constantemente esse rosto que Jesus procurou nos revelar.
6 – Deus é amor (1Jo 4,8.16) – todo o seu ser consiste em
amar, nos criou e continua criando-nos e sustentando-nos, pois a criação é um
ato contínuo – para a nossa realização e nossa felicidade (não, portanto, “para
servi-lo” que nos criou, nem “para sua glória”, ao menos no sentido normal que
todos atribuem a essas palavras).
7 – Como criador a glória de Deus é nossa vida; como pai/mãe
sua alegria é ver nossa alegria, e se deleita com nossos êxitos e realizações e
toda a ação de Deus na comunidade é dirigida única e exclusivamente a ajudar a
salvar.
8 – Em Jesus nem sequer compete nossa expectativa , pois seu
amor nos precede desde de sempre (Jo 6,44); que nos precede sem condições (Mt
5,45). Daí o chamado de Jesus à confiança total (Lc 12,7).
9 – Em Jesus aprendemos que não necessitamos pedir nada
porque já nos está dando tudo. O que necessitamos é justamente o contrário:
deixar-nos convencer, ajudar e salvar; confiar que, apesar das aparências, ele
está sempre conosco, fazendo todo o possível por nosso bem e nossa felicidade.
Se algo falha, não é nunca de sua parte, porque o que se opõe a nosso bem opõe-se
identicamente a seu amor por nós (e com maior força, se é possível: também os
pais humanos vivem antes e com maior intensidade os males de seus filhos).
10 - Quando algo que poderia ter solução não a recebe
é porque ou não colaboramos com Deus. (o nós
diz respeito à individualidade e à coletividade, posto que nem sempre somos
responsáveis diretos pelas coisas que nos sobrevém).
11 – Cabe sim falar em petição; porém de Deus para nós:
para que nos deixemos salvar, para que acolhamos seu chamado e seu impulso em
favor dos irmãos necessitados, pois é esse o sentido mais genuíno e, no fundo,
único do “mandamento” do amor.
12 - O exame de nossas orações de petição revela que a
pessoa que pede/suplica em oração está implicando objetivamente – gravando em
seu inconsciente individual e propagando no imaginário coletivo as seguintes inverdades,
distorções e monstruosidades a respeito de si e de Deus:
- - Que ela percebeu a necessidade e tomou a
iniciativa: é boa e procura convencer a Deus para que também ele o seja;
Que em troca, Deus se mantém passivo, ou pelo
menos não suficientemente ativo e generoso até que ela (a pessoa que suplica) o
convença, se for capaz.
Que se num futuro não muito distante o pedido ou
súplica não for atendido, a lógica mais elementar impõe a consequência: Deus
“não ouviu nem teve piedade”.
Que Deus poderia, se quisesse, solucionar seus males
e sofrimentos - dela e do mundo inteiro, porém, ao que parece, não quer
fazê-lo.
13 – Mesmo sem pretendê-lo em nossa intenção consciente,
certamente, porém implicando-o de modo necessário na objetividade do que
decidimos, estamos projetando uma imagem monstruosa de Deus quando suplicamos e
pedimos qualquer coisa. Não apenas ferimos a ternura infinita de um amor que
não pensa mais do que em ajudar e salvar, mas acabamos por dizer,
implicitamente, algo que não nos atreveríamos a dizer nem do mais infame dos
humanos. Compreendemos que Deus não pode
ser amoroso e monstruoso ao mesmo tempo, portanto, “se estivesse a seu alcance”,
não teria dúvidas em eliminar do mundo tanto mal e tanto horror, que ele não
seria capaz de tão inconcebível monstruosidade.
14 – Ao Deus de Jesus não é preciso suplicar e convencer. O
Deus de Jesus não se move com dádivas e sacrifícios e não favorece a alguns
poucos, não legitima as paupérrimas imagens divinas que estão transmitidas,
tampouco os estranhos comércios que se formam em torno das mesmas.
15 – Compreendemos que a boa intenção supre muitas coisas e
que a linguagem tem outras dimensões além da lógica e objetiva, de tal modo que
nem tudo depende dela, no entanto, não se deve chegar à contradição entre as
diferentes dimensões (é certo que às vezes até uma blasfêmia pode ser “oração”;
contudo, não se deve recomendar tal modo de orar...), que não se pode jogar com
questões tão extremamente delicadas: ou purificamos as imagens de Deus que
abrigamos no imaginário ou isso poderá e será usado para nutrir ateísmos, além
de provocar angústias, neuroses e desesperos.
16 – A resistência a qualquer tipo de reconfiguração da
oração parece ter apoio e garantia da própria Escritura. Porque é evidente que
não só são copiosas as petições em toda ela, mas o próprio Jesus parece
recomendá-la encarecidamente: “Pedi, e ser-vos-á dado” (Mt 7,7; Lc 11,9). O
dado é inegável, mas também o é que exige interpretação. Logo de saída, basta lê-lo
para perceber que, tomado ao pé da letra, seria uma enorme falsidade: quantas
petições, inclusive feitas com todas as garantias litúrgicas e de conteúdo, são
outorgadas? Queiruga pergunta! Por outro lado, quando se examina de perto a
questão, aparece logo a enorme cautela de Jesus – naquele tempo e naquela
cultura! – ao falar do tema:
Quando orardes, não multipliqueis palavras como fazem os
pagãos; eles imaginam que pelo muito falar se farão atender. Não vos
assemelheis, pois, a eles, porque vosso Pai sabe do que precisais, antes que
lho peçais (Mt 6, 7-8).
Marcos, por sua vez, cita uma frase significativa e tão
estranha que causou problema já nos próprios manuscritos, segundo Queiruga:
Por isso que vos digo: Tudo o que pedis orando, acreditai
que o recebestes, e vos será concedido (Mc 11, 24).
17 - Finalmente, Torres Queiruga nos faz perceber que a interpretação
bíblica mostra que, na exortação a pedir (Mc 11,24), a verdadeira ênfase não
está em pedir muito, e sim em confiar muito. A famosa parábola do “amigo
importuno” pertence às parábolas “de contraste” que insistem no “muito mais” da
bondade de do amor de Deus. Bondade que supera todo o pensável e imaginável:
torna-se inconcebível que um amigo falte desse modo à hospitalidade, “quanto
mais Deus!”. É impossível que ele falhe
conosco: a segurança é absoluta! Queiruga nos convoca a averiguar essas últimas
afirmações em Lc 11,5-13; 7,7-11; e também na parábola do juiz iníquo: Lc 18,
1-8. Segundo Queiruga a aplicação é óbvia:
Se algo busca
salientar tudo o que estamos dizendo até aqui é justamente essa confiança sem limites,
de tal modo que a aparente infidelidade à letra acaba se demonstrando como mais
profunda fidelidade ao espírito.
E note-se, além disso,
que dessa maneira não se renuncia a nenhum modo nem dimensão da oração: tudo
quanto vivemos e experimentamos diante de Deus, tudo de que necessitamos e tudo
que desejamos podemos expressá-lo sem recorrer à petição. Com a vantagem de que
então o expomos com toda a verdade, pois não ferimos o infinito respeito que
Deus merece de nós em seu amor e em sua iniciativa absolutos. Pense-se, para
continuar com o exemplo, que outra profunda verdade e que distinto clima
eclesial dai redundariam se a fórmula fosse deste teor ou semelhante:
- Senhor, em nossa preocupação com o sofrimento e o mal que
nos atinge e que também atinge o resto da família humana, reconhecemos a petição
de teu amor compadecido, que nos chama a que, superando nosso egoísmo e miopia,
colaboremos contigo, ajudando com generosidade os inúmeros necessitados ao nosso
redor e aceitando a carga de impossibilidades que se nos apresentam por conta
de nossa condição mortal/humana. Senhor, queremos escuta-lo e enveredar pelo
caminho da piedade de modo a que possamos ajudar a nós mesmos e a nossos
irmãos.
18 - Oremos com o teor do “modelo” acima ou com teores semelhantes:
sejamos cri-ativos, pois! Em contraste com todo e qualquer modelo que nos isenta
de responsabilidades e acaba por incriminar o Amor que não sabe, não pode e não
está interessado em nada além de nos amar, apoiar e sustentar intimamente: Deus
é amor.
Pautado pelo texto de Andrés
Torres Queiruga - teólogo e escritor galego. Realizou estudos no seminário de
Santiago de Compostela e na Universidade de Comillas, passou dois anos em Roma
realizando a sua tese. Foi professor de Teologia no Instituto Teolóxico
compostelá e de Filosofia da Religião na Universidade de Santiago de
Compostela. É membro da Real Academia Galega e do Consello da Cultura Galega;
foi um dos fundadores e diretor da revista Encrucillada - PELO DEUS DO MUNDO NO
MUNDO DE DEUS. Edições Loyola -
Vassum Crisso