terça-feira, 23 de março de 2010

O povo gosta!

O povo gosta!
Miguel Garcia

... E o meu povo gosta destas coisas. Mas o que vocês farão quando tudo isso chegar ao fim? Jer. 5.31

A tempo acordei para a realidade daquilo que os psicanalistas chamam de identificação – um impulso natural para unir-se aos poderes avassaladores que transcendem à pessoa. Ainda na infância ocorre um caso especial dessa pulsão: a criança engloba-se nos representantes do processo cósmico - focalização transferencial do terror, majestade e poder. Quando alguém se incorpora aos pais transcendentes ou ao grupo social em que se encontra, em certo sentido real, está procurando viver dentro de um significado maior. Ocorre uma espécie de impulso para a imortalidade, não um simples reflexo da angustia de morte, mas um esforço da pessoa inteira para alcançar a vida. Daí que a fome da humanidade por Deus – consumação do aspecto Ágape em sua natureza, está bem longe de representar o que existe de imaturo e egoísta nas pessoas: desamparo, medo, avidez pelo máximo possível de proteção e satisfação. A idéia de Deus nunca foi um simples reflexo de medo supersticioso e egoísta, conforme alegaram alguns mestres da suspeita – cínicos e pseudos realistas. Ao invés, é um fruto da genuína aspiração pela vida, um esforço para obter plenitude de sentido.

...Parece que a força vital estende-se naturalmente para além da própria Terra, uma das razões pelas quais o homem sempre colocou Deus no Céu. James

Admira-me, que uma das principais características do humano seja sua torturada insatisfação consigo mesmo, sua constante autocrítica. É a única maneira de vencer a sensação de limitação irremediável inerente à sua situação real (fragilidade e finitude), dá pra acreditar? Daí a festa dos ditadores, “evangelizadores”, com ou sem aspas, sádicos e afins. Essa turma toda sabe que as pessoas gostam de serem vergastadas com acusações de sua própria desvalia fundamental, porque isso reflete como se sentem realmente a seu próprio respeito. O sádico não cria o masoquista, ele já o encontra pronto e bem disposto a comprar uma cópia do último livro e sermão do homem de Deus. Fala sério! Eis que tudo era bom!...

E quer saber de mais ainda: através desse pul-gente processo, é oferecido às pessoas um meio de superarem a desvalia – oportunidade de idealizarem seu eu, de erguerem-se a níveis “verdadeiramente” heróicos, de estabelecerem um diálogo complementar consigo mesmas, o que é natural à sua condição. A pessoa se critica por sentir-se aquém dos ideais heróicos de que carece a fim de ser uma criação ou até mesmo creação, como diria Humberto Rholden , realmente impon-ente.

Hoje sei que tanto os objetos transferenci-ais como aqueles que seguem fascinados por estes, “experimentam” o que se poderia denominar de o impossível para os feitos humanos: querem ao mesmo tempo expandir englobando-se nos poderosos que os transcendem e, no entanto, querem mesmo assim permanecer indivíduos afastados, trabalhando no projeto da auto-expansão narcisista e em menor escala. Auto-engano? Conclusão: a corda vai quebrar do lado mais fraco. Salve-se quem puder.

Não quero tratar a transferência de uma maneira totalmente depreciativa, como já fiz em outras ocasiões, pois ela satisfaz impulsos vitais para a integridade humana. O homem precisa incutir em sua vida um valor que lhe permita julgá-lo bom. Transferência é uma forma de fetichismo criativo (quase sempre penso ser automático), o estabelecimento de um lugar a partir do qual nossas vidas podem extrair os poderes de que necessitam e desejam. O que torna o “heroísmo” transferencial degradante é ser o processo inconsciente e reflexo, não ampla-mente sob o controle da pessoa. Só de imaginar–me em tal areia movediça já começo a sufocar...

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